“Em tempo de guerra não se limpam armas” – notas sobre a crise de segurança pública no Rio de Janeiro

Na madrugada do dia 23 de dezembro de 2017 foi registrada a morte do cabo Melqui Oliveira, que havia deixado seu plantão quando foi abordado por um grupo de criminosos. Identificado, o policial foi atingido por uma saraivada de projéteis, vindo a falecer. A morte do cabo Oliveira deve ser sentida como a de qualquer outro ser humano. Contudo, para além da tragédia pessoal e familiar que a perda de uma vida sempre traz, a morte do cabo Oliveira é portadora de um dado estarrecedor: ele foi o 132º policial militar morto estado do Rio de Janeiro em 2017, o maior em toda a sua história, até aqui (!)

Os números deixam claro que a morte do cabo Melqui Oliveira não é um fato isolado e, possivelmente, antes que o ano termine, outras mortes de policiais militares serão registradas.

É de domínio público que a situação de segurança no estado do Rio de Janeiro vem se deteriorando fortemente desde a transição dos anos 1970 para os anos 1980. Inicialmente circunscrita às periferias, em particular à Baixada Fluminense e às favelas incrustradas na topografia acidentada da Capital, a violência irradiou-se para todos os quadrantes do estado, democratizando-se. Hoje a criminalidade atinge índices exorbitantes quer na Zona Sul ou na Barra da Tijuca (parte nobre da Zona Oeste da cidade), áreas de altíssimo poder aquisitivo, quer nas periferias das Zonas Norte e Oeste, onde a pobreza urbana é uma chaga indelével. O mesmo vale para o entorno da cidade, em particular a Baixada Fluminense e Niterói (antiga capital do estado do Rio de Janeiro), ou para os interiores (Região dos Lagos, Costa Verde etc.), outrora enclaves de tranquilidade e bem-estar.

Neste contexto, uma das questões que se colocam no debate sobre segurança pública no estado do Rio de Janeiro é: por que isto está acontecendo?

É nítido que a deterioração contínua e vertiginosa das condições de segurança pública no estado está ligada a diferentes fatores sociopolíticos, dentre os quais a histórica desigualdade social, o agravamento da pobreza urbana e a falência dos órgãos de assistência social, dentre os quais se destacam a educação, a saúde e as políticas de habitação e saneamento básico. Entretanto, o presente artigo gostaria de destacar dois elementos, que, sem prejuízo dos demais, parecem fundamentais: a “institucionalização” do crime e a inexistência de uma política de segurança racionalmente constituída, sistematicamente implementada e socialmente eficaz.

A “institucionalização” do crime é a “crônica de uma morte anunciada”. Segundo autores como Eduardo Araújo Silva (2003), ainda na primeira metade do século XX o jogo do bicho teria sido a primeira infração penal sistematicamente organizada no Brasil. Outros, como Ivan Luiz da Silva (1999) e Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini (1997), apontam a mistura de presos políticos e presos comuns como a origem do crime organizado. Para estes autores, sem que se exclua a transposição do crime individual para o delito cometido por quadrilhas especializadas, elevam-se a divisão funcional, o planejamento e a estruturação racional da conduta criminosa que presos comuns teriam adquirido de presos políticos (supostamente comunistas adestrados em técnicas de guerrilha) nos cárceres da ditadura militar, entre os anos 1960 e 1970. Deste conluio delitivo teriam surgido as primeiras organizações criminosas do estado e do próprio país.

Sem prejuízo da história, seja pela via do jogo do bicho, seja pelas correlações promíscuas entre presos comuns e presos políticos, o crime não apenas foi sendo paulatinamente organizado, mas sistematicamente “institucionalizado”. Esta institucionalização relaciona-se tanto aos grupos de extermínio (anos 1970 e 1980) e às milícias (anos 1990 em diante) que hoje dominam vastos territórios do estado, quanto aos traficantes de drogas que a partir dos morros e favelas controlam a distribuição de entorpecentes e fomentam inúmeros outros crimes. Mas a expressão mais perversa desta “institucionalização” é sua interpenetração no corpo político. Como exemplo, o leitor não vai se esquecer que há até poucos dias os três últimos ex-governadores do estado do Rio de Janeiro (Rosinha Garotinho, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral) estavam atrás das grades, acusados de diferentes crimes. Desta forma, parece corroborada a tese da pesquisadora Jaqueline Muniz, que, em matéria publicada no Jornal do Brasil, afirmou que “no Rio de Janeiro se governa com o crime, e não contra o crime”.

O segundo elemento a ser destacado é a debilidade das políticas de segurança pública. Após o fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) comandadas pelo então secretário José Mariano Beltrame durante os governos Sérgio Cabral, o Rio de Janeiro recrudesceu seus índices de segurança, atingindo, no período pós-grandes eventos (Copa do Mundo, Olimpíadas etc.), patamares degradantes. Contra este cenário de guerra, onde a criminalidade não respeita sequer as autoridades policiais, como revela o número recorde de policiais mortos no estado, o Plano de Nacional de Segurança Pública foi apresentado por Michel Temer nos seguintes termos: “Vamos começar um experimento, uma série de ações, nada pirotécnico, muito planejado, para fazer operações no Rio de Janeiro”. Nada mais lamentável!

Experimentos, Sr. Temer? Os índices de segurança pública do estado evidenciam o que qualquer cidadão já sabe: o Rio de Janeiro não precisa de experimentos! Ele precisa de ações racionais, sistemáticas e eficazes capazes de resgatar o estado e sua capital da crise civilizatória na qual se encontra. Para que este resgate aconteça, há que retomar a fidúcia na condução das políticas de segurança pública, algo que, no momento, nem o sistema de justiça (em nível federal e estadual), nem as autoridades dos poderes Legislativo e Executivo são capazes ou querem realizar. O Rio de Janeiro vive uma situação iminente de guerra urbana e, como nos ensinou o contista lisboeta, “em tempo de guerra não se limpam armas”

Referências Bibliográficas:

GELANI, F. “No Rio se governa com o crime, e não contra o crime”, diz especialista em segurança pública”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jul. 2017. Disponível em: < http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/07/22/no-rio-se-governa-com-o-crime-e-nao-contra-o-crime-diz-especialista-em-seguranca-publica/> . Acesso em: 24. Dez. 2017.

GOMES, L.F.; CERVINI, R. Crime Organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

RUI, M. “Em tempo de guerra não se limpam armas”. In? RUI, M.  Regresso Adiado (contos). 2. Ed., Lisboa/Luanda: Edições 70, 1977.

SILVA, E.A. Crime Organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.

SILVA, I.L. Crime Organizado: aspectos jurídicos e criminológicos – Lei nº 9.034/95. Belo Horizonte: Ciência Jurídica, 1998.

Deixe um Comentário